Corações Orvalhados

Mariana acordou sobressaltada; afinal, o seu despertador natural havia funcionado na perfeição.

Nesse dia, tinha um objetivo a cumprir. A sua amiga Idalina despertara-lhe a curiosidade quando, numa das suas longas conversas, lhe confiara um segredo. Muitas vezes, de manhã, saía do moinho velho onde dormia e partia, pelos bosques, à procura daquilo a que chamava corações orvalhados.



Uma vez, Mariana perguntou-lhe: “O que é isso? Acaso existem corações escondidos no bosque?”

- Se queres saber, um dia destes, levanta-te cedo e vem comigo. Ainda não encontrei nenhum, mas sei que existem – respondeu Idalina.

Portanto, chegado o momento, Mariana estava curiosa e levemente apreensiva. Após um banho rápido, vestiu o fato de treino, calçou as sapatilhas e olhou de relance para o espelho: os longos cabelos negros, deixados soltos, emolduravam um rosto perfeito de adolescente onde sobressaiam uns olhos verdes grandes e expressivos. Era alta e um pouco roliça, nada que não se pudesse resolver com algumas caminhadas e um pouco de exercício. Pegou na mochila onde enfiou algumas coisas de primeira necessidade e meteu-se a caminho.

Os seus pais confiavam no seu bom senso e haviam-na educado com os pés bem assentes na terra, por isso, não se opunham a estes passeios esporádicos. Todos na aldeia gostavam dela, apreciavam a sua boa disposição; no fundo, a sua juventude e o seu bom coração. Havia apenas um senão nesta avaliação psicológica que dela faziam: não viam com bons olhos o convívio e a amizade que mantinha com Idalina, uma velhinha de vestes simples, cabelo branco desgrenhado e nariz pontiagudo. Que idade teria? Ninguém sabia ao certo. Mais de um século, diziam, pois nem os mais velhos se lembravam dela com outro aspeto. Vivia isolada num moinho velho que, curiosamente, não pertencia a ninguém e onde preparava os seus chás e ervas medicinais.

Fosse como fosse, não fazia mal a ninguém, e ninguém se preocupava com ela. A não ser a Mariana, claro!

Quis o acaso que se cruzasse com ela quando, um dia, a pedido da mãe, fora comprar uma manta à feira. O cheirinho a frutos e ervas aromáticas que dela emanava, atraíram-na, qual íman poderoso, e nunca mais se libertara da sua ação.

Quase todos os dias, após a escola, Mariana passava pelo moinho velho onde a esperava um chá reconfortante com sabor a mirtilo e menta, levemente açucarado. Conversavam um pouco, nada de importante. Apenas o que costumam fazer os bons amigos, uma partilha dos momentos mais marcantes da vida. Mariana sentia-se fascinada por tudo o que Idalina lhe ensinava sobre a vida, a Natureza, o respeito pelas coisas vivas. É certo que aprendera tudo isso na escola; no entanto, ter a oportunidade de viver as situações, tornava tudo diferente.

Que adianta falar da vida ou da morte se não assistirmos, ao vivo, ao desabrochar de uma flor, ao eclodir do ovo quando dele sai o pintainho; à cobra que, num serpentear prateado, é apanhada pela condição de sobrevivência de uma qualquer ave de rapina…Tudo faz sentido quando a proximidade com a natureza é profunda. Idalina mostrava possuir a sabedoria e a sensibilidade próprias de quem vive essa circunstância há muitos anos; contudo, o verdadeiro fascínio residia na aura de mistério que a envolvia. Mariana sentia-a, mas não a conseguia definir.

Naquela manhã, partiram as duas bem cedo. Seguiram por um caminho estreito, ladeado por vegetação bravia e muito arvoredo. Mariana não saberia dizer por quanto tempo andaram, mas tiveram que parar algumas vezes e, nesses momentos, agradeceu não se ter esquecido de levar algo para comer e beber. Idalina parecia não ter fome ou sede e orientava-se com facilidade, o que a tranquilizou. O caminho desaparecera há muito quando, como que retirado de um conto de fadas, um local maravilhoso surgiu diante dos seus olhos. Por todo o lado, arbustos frondosos exibiam orgulhosamente os seus frutos; uns vermelhos, outros levemente rosados, outros de um roxo quase negro.

-Aqui estão os corações orvalhados!- Exclamou Idalina, não escondendo uma vibração de entusiasmo na sua voz.

Afinal, não passavam de simples amoras deliciosas, sem dúvida, mas apenas amoras!

“Não fiques desiludida, Mariana. Sabes, as amoras representam todas as pessoas, mas procura bem. Estás a ver estas? Ostentam um brilho orvalhado maravilhoso e têm a forma de um pequeno coração. São raras e preciosas… São o que procurávamos, os corações orvalhados! Representam as pessoas como tu.

Foi com alegria contagiante que colheram as amoras. Já no moinho, Idalina juntou todos os corações orvalhados e colocou-os numa caixa.


“É uma caixa mágica”- disse com toda a naturalidade, mas sem mais explicações.

Sem saber o que pensar de tudo aquilo, Mariana regressou a casa um pouco cansada, mas estranhamente feliz. Seria ela um coração orvalhado? Essa era a opinião de Idalina, não a sua.

Logo que fosse possível, conversaria com ela sobre o que pretendera dizer; mas, por agora, queria apenas dormir.

Estranhou o silêncio, a quietude que tudo envolvia. A porta do moinho entreaberta… Entrou. “Onde estaria Idalina que, contrariamente ao que era habitual, não aparecera à sua chegada?”

Foi então que reparou no bilhete pousado num banco, junto à lareira. Nele, algumas palavras escritas com mão trémula:

 “Querida Mariana: antes de te conhecer, vivia triste, infeliz e sozinha. Ninguém queria saber de mim, ninguém me visitava. Achavam-me uma velha tonta, sem interesse, que já não servia para nada. Vieste tu, e tudo mudou. Passaste a visitar-me todos os dias, fizeste-me companhia nos meus passeios, ensinámos muitas coisas uma à outra…É por isso que me sinto PESSOA  outra vez. Sinto-me viva!

Hoje recebi um convite irrecusável para conhecer o local encantado onde passarei a viver. Peço-te, abre a caixa mágica que deixei para ti. Não fiques triste, parti feliz nas asas de um anjo!”

Apesar do choque inicial provocado pela partida súbita da amiga, Mariana abriu a caixa. Uma leve brisa passou pelo seu rosto- cheirava a amoras silvestres- e sentiu-se imediatamente transportada para outra dimensão. Estava a planar! conseguia ver, sentir, mas apenas isso. De repente, percebeu tudo.

Ali estavam todos os velhinhos, tristes e sozinhos nas suas casas. A sombra ameaçadora da solidão crescia sobre eles, imparável. De súbito, Mariana ficou siderada com o que lhe era permitido ver: junto de cada velhinho, um pequeno coração orvalhado pousava suavemente e era…como ela! Sim, podia sentir a mesma energia, a mesma alegria, o mesmo amor!

“Que lindo! Seria isto possível?”

A sombra ameaçadora da solidão recuou até desaparecer completamente. Os velhinhos sorriam. Já não estavam sozinhos, não estariam sozinhos nunca mais. E quando o momento chegasse, também eles partiriam nas asas de um anjo…sorrindo!
                                                                                                                                   

Este conto mágico é uma singela e sentida homenagem a todos os “velhinhos” que, tendo por companhia apenas a solidão, partiram nas “asas de um anjo”.

É dedicado a todos os “corações orvalhados” deste mundo, incansáveis na sua missão feita de alegria, compaixão e amor.

É um apelo à solidariedade de todos nós para com aqueles que apenas convivem com o esquecimento e a solidão.


 

Ana Luisa Tinoco